Um dos problemas fundamentais da sociedade de hoje é o facto de as ideias não valerem por si mesmas mas sim pelas circunstâncias em que são expressas. Importa quem as declara e donde o faz. O que se diz é secundário. Mal-afortunada sociedade que tais estúpidos comportamentos adquire.
Já houve um tempo no qual era o que se dizia que contava. Podia ser-se um esfarrapado asceta, podia viver-se numa pipa e ser-se o maior dos doidivanas: se se dissessem coisas acertadas elas eram ouvidas e levadas em consideração. As ideias exprimidas tinham valor próprio, não um valor pré-estabelecido condicionado ao estatuto ou posição do seu autor.
Hoje não. Pode dizer-se a maior idiotice e ela será respeitada se o seu emissor cumprir os critérios em voga de quem ou donde.
Pode ter-se acabado de dizer uma verdade insofismável: sem a devida embalagem, será desprezada por todos (Será uma questão de marketing? Será que o sonho do marketing em que a embalagem vale mais do que o produto, está finalmente cumprido?). Pode expor-se a mais sensata conclusão: ninguém a ouvirá se não tiver sido enunciada do alto de uma qualquer cátedra ou sob a protecção de um qualquer fardamento.
As pessoas, inconscientemente habituadas a serem conduzidas por forças superiores, destituíram o seu próprio juízo de valores. Automaticamente (para usar uma das palavras preferidas pela mesmerizada populaça) se aceita ou não o que quer que se ouça, se cumpridos esses critérios de estatuto social.
Se vêm de alguém com algum tipo de título ou de um canal supostamente responsável, as ideias são aceites, mais ou menos dogmaticamente, as contas são tidas por boas, as intenções, por mais banais, erradas e grotescas que forem, supostas as melhores. Ora, disto é o que não falta por aí. É esta abundância de doutores analfabetos, incessantemente a debitar barbaridades do alto das suas cátedras de papelão que me inspira estas linhas.
O facto de hoje, ser imperativo ter atenção às fontes (dado que se encontram sob a mesma aparência e lado a lado, as maiores idiotices e os melhores discernimentos, e dado ainda que o mundo continua cheio de burlões, uma triste mas indiscutível realidade) deve ser encarado como um incentivo ao uso do juízo próprio, não há sua renúncia.
As maiores patetices têm hoje de facto a mesma aparência do que as ideias mais profundas e não nego que nunca teve de se ser tão cuidadoso nas avaliações que se fazem. Mas o trabalho não é assim tanto que valha a pena abdicar do nosso discernimento. Uma vez avaliadas humildemente as nossas competências, estaremos habilitados a julgar tudo o que se nos vai deparando. Um passo gigantesco em direcção à Cidadania.
Atenção, o processo deve continuar dentro das escolhas que se vão fazendo, pois o facto, por exemplo, de se estar a ler um jornal já seleccionado, não deve de modo algum fazer-nos desligar a avaliação crítica do que nele lemos. A atitude avaliadora deve estar sempre presente, página a página, parágrafo a parágrafo. No meio do bom está frequentemente o mau; no meio do mau inesperadamente se pode encontrar o bom. Muitas vezes, ao lado da página de astrologia e dos anúncios do Prof. Caramba, está informação correcta, útil, válida. E vice-versa.
Parece difícil? Um desmesurado esforço intelectual? Nem pensem: basta desligar o automático estupidificante e preferir o normal bom senso. Não há esforço algum em jogo e o proveito, creiam-me, é grande.
Ao renunciarmos a escolher, ao optarmos por critérios automáticos, além de estarmos a ser servis e a sujeitar-nos a ser alunos de uma escola disparatada, estamos a abdicar pecaminosamente da nossa inteligência, estamos a ser cegos por não querermos ver. Cometemos a asneira crassa de estamos a impor uma certa infalibilidade a outrem. Toda a infalibilidade que o mundo precisa está a cargo do Papa, não faz falta mais nenhuma.
Toda a gente faz asneiras, quanto mais dizê-las. Ora, do direito a dizer asneiras, ninguém deve ser privado (se isto não está na Constituição, devia estar!).
Já do direito a consumi-las, devemos privarmo-nos a nós mesmos.
É fácil: basta escolher.
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